Será que é hora de rever seus conceitos sobre o que pode ser considerado um treino funcional? Descubra aqui.
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Foto: LocalFitness.com.au em Wikimedia Commons |
“Treinamento Funcional” ou “Treino Funcional” é um daqueles
termos que não fazem muito sentido. Pelo menos para quem fala e entende
português.
Segundo definições de alguns dicionários, “funcional” é algo
“relativo a função ou ao exercício de uma função” ou “que permite efetuar
alguma coisa de melhor maneira”.
Ou seja, um treino funcional deveria ser aquele que lhe dá
aptidão para executar melhor alguma ou algumas funções.
Entretanto, a maioria das pessoas quando ouve falar em
treino funcional, imagina um monte de gente agachando em cima de bolas ou bosus,
pulando sobre caixas ou bancos, fazendo flexões sobre pranchas de equilíbrio,
sapateando em uma escadinha de agilidade, e mais todo o tipo de invencionices
que se possa imaginar, normalmente com algum tipo de instabilidade ou de malabarismo
no meio do exercício.
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Talvez algo tipo isso aqui... |
E eu me pergunto: Como isso pode ser funcional? Eles estão
treinando para trabalhar no Cirque du Soleil? Onde em nossa vida poderíamos
precisar desse tipo de especificidade?
Nada contra quem gosta desse tipo de treino. Cada um deve
saber, a nível pessoal, quais são essas “funções” que pretende executar melhor.
O treinamento funcional deveria ser desenhado especificamente
para melhorar a performance de atividades da vida diária, atividades recreativas
e/ou a performance esportiva¹. Agora, se você não consegue observar qualquer
aumento na funcionalidade em tarefas da sua vida, trabalho, lazer ou esporte
com certos exercícios, talvez você não devesse chamá-los de “funcionais”.
Existe Treino Que Não Seja Funcional?
Antes do nascimento da moda do treinamento funcional,
praticamente todo tipo de treino tinha por objetivo melhorar alguma coisa. E acho
que, por esse ponto de vista, ainda está para nascer um treino que não seja
funcional. O treinamento físico desportivo, por exemplo, visa melhorar a
performance em um esporte competitivo específico, logo ele não deixa de ser um
treinamento funcional.
Até mesmo o mais básico exercício de musculação, como uma
cadeira extensora, pode ser considerado funcional para um idoso sarcopênico, já
que ele precisa de força nas pernas para manter sua capacidade funcional e
independência. É claro que um leg press seria um exercício mais funcional; um
agachamento então, mais funcional ainda, visto que ele imita um movimento
frequentemente utilizado em nossa vida diária (sentar e levantar) – quer mais
funcional do que isso?! Mas se esse idoso mal tem força e coordenação para
levantar de uma cadeira, ganhar força (ainda que através de um movimento
simples como a extensão de joelhos) com certeza vai ser “funcional” para ele.
Então, tão importante quanto qual função o treino será destinado a melhorar, é para quem esse treino vai ser
prescrito, já que as demandas de um atleta competitivo serão diferentes das
necessidades de um idoso sarcopênico.
Treino Funcional vs. Treino de Força
Alguns estudos científicos compararam o treinamento
funcional ao treino resistido tradicional (i.e.
musculação) em relação a diferentes desfechos. Vamos ver alguns deles:
Aumento da Capacidade Funcional
Um estudo
comparou o treino (resistido) tradicional com um treino funcional em 101
adultos saudáveis de meia-idade (entre 40-60 anos) e idosos (acima de 60 anos).
Após 12 semanas de treino, ambos os grupos apresentaram melhoras significativas
na Avaliação Funcional de Movimento (FMS - Functional Movement Screen™), porém
apenas o grupo funcional aumentou significativamente seu desempenho no teste de
equilíbrio em Y.
Também pudera, eles treinaram especificamente movimentos
realizados com base instável, como agachamentos com os pés juntos e afundo com
os pés alinhados. Ainda assim, as diferenças entre os grupos foram pequenas (a
ponto de não serem significativas). Os pesquisadores também observaram que as
mulheres do grupo funcional melhoraram menos
do que os homens do funcional e do que as mulheres do treino convencional, sugerindo
que um aumento inicial da força (por meio do treino resistido) em mulheres
adultas pode ser mais importante para aumentar a funcionalidade do que um
treinamento funcional específico.
Outro estudo
realizado em idosos com limitações funcionais (incluindo artrite e dor)
verificou que tanto o treino de força realizado com elásticos (que foi mais
estilo uma fisioterapia) quanto o treino funcional (realizando atividades da
vida diária como sentar e levantar, caminhar e subir degraus) foi capaz de
aumentar a força dos membros inferiores (medida por dinamômetro) e a velocidade
de caminhada em ambos os grupos. Contudo, o grupo funcional aumentou mais a
velocidade de caminhada e levantou-se da posição sentada mais eficientemente,
visto que eles praticaram isso especificamente durante os treinos.
Força e Hipertrofia
Embora tanto o treinamento funcional quanto o treino de
força pareçam ser úteis para melhorar a capacidade funcional em idosos, a
maioria dos jovens e adultos que se envolve no “treinamento funcional” não está
interessada em caminhar mais rápido, mas sim em ficar mais forte, ganhar
músculos ou emagrecer fazendo exercícios que considera menos chatos do que
levantar pesos.
Para descobrir essas diferenças em relação à aptidão
muscular, pesquisadores da Universidade de Wisconsin/EUA dividiram 38
participantes jovens em um grupo de treino tradicional vs. um grupo de treino funcional. Só que o treino
funcional era composto por vários exercícios usados normalmente na musculação,
como agachamento livre, barra fixa e mergulho nas paralelas; não fosse pelo
supino com halteres deitado na bola suíça, apoio com os pés elevados na bola e
flexão de joelhos na bola, o resto dos exercícios poderia tranquilamente fazer
parte de um programa de musculação “não-funcional”.
Depois de 7 semanas de treinamento, ambos os grupos apresentaram
melhoras no teste de força (1RM) no agachamento e no supino, no teste de apoio
(flexões de braço), no equilíbrio em um pé só e no teste de resistência de
extensão lombar. O grupo tradicional também apresentou um aumento
significativamente maior na circunferência dos bíceps e antebraços
(provavelmente por terem feito rosca direta), panturrilhas e no número de situps realizados
no teste abdominal, enquanto o grupo funcional apresentou maiores aumentos na
circunferência dos ombros e no teste de flexibilidade (sentar e alcançar).
Segundo os autores, ambos os tipos de treino parecem ser
igualmente benéficos para melhorar a resistência muscular, equilíbrio e força.
Contudo, o aumento de várias circunferências (hipertrofia), resistência
abdominal e flexibilidade parecem apresentar melhoras específicas em relação ao
programa aplicado.
Embora esse estudo tenha encontrado desfechos semelhantes de
força e pouca diferença na hipertrofia, o treino funcional não foi muito
diferente de um treino tradicional de musculação usando pesos livres. Não é
exatamente o que a maioria das pessoas imagina quando pensa em “funcional”.
Em compensação, este próximo estudo sim
usou um exercício malabarístico na comparação. Os pesquisadores colocaram 59
homens para agachar ou no Smith, ou com peso livre (barra) ou sobre pranchas de
equilíbrio. Após 7 semanas de treino, os três grupos apresentaram aumentos
similares na força (teste de 10RM e contração isométrica voluntária máxima) nos
três exercícios e aumento na espessura do músculo vasto lateral da coxa, mas
apenas o grupo que treinou sobre as pranchas de equilíbrio melhorou o salto
vertical em condições de instabilidade (sobre as pranchas).
E novamente, os pesquisadores sugeriram que a familiarização
com o exercício foi associada a aumentos substanciais no teste de força e no
salto vertical. Contudo, uma das grandes fraquezas desse estudo foi que ele
limitou a flexão de joelhos a 90º, encurtando a amplitude do agachamento; e
menor amplitude está associada a uma menor hipertrofia.
Porém, nem sempre o treino funcional apresenta os mesmos
resultados que o treino tradicional. Em um estudo
em que 36 homens treinados foram randomizados para treinar supino por 10
semanas com cargas equivalentes a 6RM no Smith (multi força), ou com halteres
(no banco) ou deitado sobre uma bola suíça (com barra livre), os dois últimos
grupos evoluíram mais no exercício treinado do que o grupo do Smith. Porém, na
hora de transferir essa força para um exercício não treinado (supino reto com
barra livre), o grupo que treinou no Smith apresentou melhor resultado do que
os outros dois grupos.
Emagrecimento e Composição Corporal
Para verificar melhoras na composição corporal, precisamos
olhar estudos de outra área do funcional, o Treinamento Funcional de Alta
Intensidade (HIFT). Aqui sim entramos de vez no que a maioria das pessoas
imagina quando pensa em “funcional”, sendo o Crossfit um dos melhores exemplos
desse método.
Um estudo com 26
homens e mulheres jovens verificou que um treino de 16 semanas de HIFT foi
capaz de reduzir o percentual de gordura em 1,6 p.p. (pontos percentuais) em
homens e 1,2 p.p. em mulheres, além de aumentar a força (5 RM) no agachamento
frontal em 10% nos homens e 16% nas mulheres.
Além disso, o HIFT quando aplicado em sobreviventes de câncer mostrou resultados positivos no ganho de massa
magra (+3,8 kg), perda de gordura corporal (-3,3 kg) e redução do percentual de
gordura (-4,7%), bem como no equilíbrio, força e potência dos membros inferiores, capacidade aeróbica e resistência, e em movimentos funcionais, como carregar
objetos pesados.
Em outro estudo, um programa de exercícios funcionais em forma de circuito usando elásticos,
com estações de equilíbrio, coordenação e agilidade também foi capaz de reduzir
a gordura corporal (-3,4%) e aumentar a força, capacidade aeróbica, coordenação
e agilidade, além de melhorar os níveis de colesterol em mulheres menopausadas
ao longo de 16 semanas. Em compensação, os mesmos autores já tinham tentado
aplicar um modelo similar de treinamento na mesma população durante 8 semanas com resultados pífios.
Mas nenhum desses estudos comparou diretamente o HIFT com o
treinamento convencional. Então, um grupo de pesquisadores brasileiros resolveu comparar dois tipos de treino com carga/volume similar
em 53 mulheres menopausadas. Um treino combinado de aeróbico + musculação versus um treino de aeróbico + funcional (com
exercícios com elásticos, bola suíça e halteres, estações de coordenação [escadinha
de agilidade], equilíbrio e agilidade). O que eles encontraram
foi que, após 8 semanas, apenas o grupo do treino combinado perdeu gordura
(-1,3 p.p.), além de ter aumentado mais a massa magra (não significativo) do
que o grupo funcional, porém apenas este último apresentou redução do
colesterol LDL (colesterol ruim).
Em outro estudo comparando o HIFT vs. um
treino em circuito, apenas o grupo que fez HIFT reduziu seu percentual de
gordura (%G), enquanto o grupo que fez o treino de circuito aumentou o %G.
Por esses resultados, parece então que o problema é
treinamento em circuito. Mas não, talvez o real problema possa ser a
(falta de) intensidade e/ou a dieta (que na maioria dos estudos não foi
controlada).
O emagrecimento depende de vários fatores e querer
atribuí-lo a um método específico de treinamento é superssimplificar algo que é relativamente
complexo.
O Que Isso Significa Para Você
Um dos principais problemas ao comparar o treino tradicional
com o treinamento funcional é que nem todo "funcional" é criado igual. Nem mesmo
os estudos científicos apresentam resultados consistentes. Cada treinador ou
instrutor entende o treino funcional de uma forma diferente, e cada praticante
possui demandas diferentes de funcionalidade. Aí fica claro que não existe uma
única resposta sobre qual treino é melhor (ou mesmo se eles diferem) para determinado objetivo. No fim das contas, depende.
Mas o que os resultados desses estudos nos trazem com frequência é explicado por um velho e conhecido princípio do treinamento físico – o princípio da especificidade. Esse princípio impõe que o treinamento seja
baseado nos requisitos e demandas específicos de cada atividade. Ou seja, para que
um exercício seja específico, ele deve ser o mais semelhante possível à ação
que se pretende melhorar.
E isso explica muitos dos resultados observados acima.
Como Usar Essa Informação
OK, temos que reconhecer que, segundo as pesquisas, os
exercícios “funcionais” nem sempre são piores (ou melhores) do que um exercício tradicional,
e muitas vezes eles se confundem (podendo até ser o mesmo exercício em diferentes estudos).
Talvez alguns exercícios funcionais aumentem o risco de uma
atividade (agachar com uma barra cheia de pesos sobre uma superfície instável,
por exemplo, ainda me parece algo bem inseguro), mas eles também podem promover
uma maior propriocepção e ativação de outros grupos musculares estabilizadores.
Porém, nem todo treino funcional gira em torno de instabilidade; e nem deveria,
afinal nem sempre estamos treinando para ser o próximo Gabriel Medina, e
normalmente o chão não fica se movendo sob nossos pés.
Em alguns programas de treinamento, certamente há espaço
para coisas como exercícios de estabilização do core, uso da escadinha de agilidade, exercícios em superfícies
instáveis e outros movimentos “funcionais”, mas acho que você saberia se esse
fosse seu caso. As necessidades específicas de cada praticante é que vão
determinar a melhor intervenção a ser aplicada.
Agora, se você é uma pessoa comum e a maior parte de seu
programa de treinamento envolve um monte de equipamentos estranhos e movimentos
sem qualquer aplicação às atividades específicas que você faz, você possivelmente
poderia se beneficiar de um treino melhor adaptado aos seus objetivos, aproveitando
melhor o escasso tempo disponível para dedicar ao exercício físico.
E lembre-se, simplesmente ficar mais forte, mais ágil, ter
maior mobilidade e maior aptidão cardiorrespiratória também vai aumentar sua
funcionalidade no dia-a-dia.
Em sua essência, qualquer treinamento poderia ser
considerado funcional. Ninguém precisa reinventar a roda em seus treinos só
para ser diferente e parecer legal no Instagram. Os treinos devem ser
desafiadores, mas eles podem continuar sendo simples. A célebre frase de
Leonardo da Vinci já dizia que “a simplicidade é o último grau de sofisticação”.
Então, faça o simples e faça o que realmente funciona para seus objetivos.
E se você quer ganhar músculos e ficar mais forte, a
musculação certamente será funcional para você, apesar de não ter “funcional” no
nome.
Fontes:
1. Beckham SG et al. “FUNCTIONAL TRAINING: Fad
or Here to Stay?”. ACSM's Health & Fitness Journal. 2010 Nov-Dec;14(6):24-30.
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