“Açúcar é mais viciante que cocaína”!? Entenda a ciência por trás disso e pare de repetir baboseiras.
Um dos argumentos mais utilizados contra o açúcar é que ele
é mais viciante do que a cocaína. As pessoas ouviram de alguém e acreditaram nisso por ser “cientificamente
comprovado”.
Bem, se você acredita que você está viciado em açúcar, aqui
está uma notícia boa...
...Você não está!
E para provar esse ponto, bastaria esse argumento:
Você já se pegou consumindo descontroladamente sacos e mais
sacos de açúcar como o Dwayne @therock Johnson nesta foto?
Você é do tipo que não consegue parar de cheirar carreiras e
mais carreiras de açúcar como o Arnold @Schwarzenegger em seus tempos áureos?
Se você respondeu “não” para qualquer uma dessas perguntas,
então...
Não, você não está viciado em açúcar!
Como Surgiu Esse Mito
A verdade é que o açúcar, por si só, não é viciante;
certamente não da mesma forma que certas drogas são. Se fosse, você estaria
abrindo um saco de açúcar nesse momento e comendo-o às colheradas. No entanto,
quando a maioria das pessoas se imagina nessa situação, provavelmente sente
nojo ou náuseas.
A ideia de que o açúcar é viciante vem de pesquisas feitas
com ratos. Em um estudo
de 1988, o pesquisador Bartley Hoebel mostrou que o sistema cerebral de recompensa
alimentar pode aumentar os níveis de dopamina no cérebro de maneira semelhante à
cocaína, e propôs que a liberação de dopamina poderia desempenhar um papel no
vício alimentar (presumindo que possamos nos viciar em comida). Vinte anos mais
tarde, ele foi coautor de outro estudo
em que foram demonstradas similaridades comportamentais entre a autoadministração
de drogas em roedores e o acesso intermitente ao açúcar.
Contudo, o que as pessoas normalmente não sabem (ou não percebem)
é que essas condições que criam comportamentos semelhantes ao vício em ratos que
consomem açúcar não se aplicam a humanos.
O Mecanismo do Vício
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais, o vício é caracterizado pela perda de controle no consumo de drogas (ou
substâncias), motivação aumentada para seu consumo, e uma persistência desse
consumo apesar de consequências negativas. O vício também está associado a uma
sensação de recompensa, que ocorre antes mesmo do uso (e até mesmo via gatilhos
ambientais que resultam no desejo de consumo), e é atenuada durante o consumo propriamente
dito (aumento da tolerância), bem como à dependência e síndrome de abstinência (mediante
privação da substância).
O fato é que comportamentos semelhantes ao vício, como a compulsão
por açúcar, somente ocorrem quando os pesquisadores fornecem acesso intermitente ao açúcar para os roedores. Um protocolo comum é limitar o
acesso dos ratos ao açúcar por 12 a 16 horas, e depois deixá-los com livre
acesso ao mesmo (normalmente uma solução de água com açúcar) por 8 a 12 horas.
Nessas condições, e utilizando ratos pré-selecionados por
gostarem de açúcar (diferente do que ocorre nas pesquisas com drogas, em que
são utilizados ratos não acostumados às drogas), os cientistas encontraram comportamentos
semelhantes aos de ratos viciados em cocaína, heroína e outras drogas. Contudo,
quando os roedores podiam consumir açúcar à vontade, eles não apresentavam esse
tipo de comportamento¹.
E no mundo real não existe nenhum gigante de jalequinho branco
impedindo nosso acesso ao açúcar. Na verdade, nós (humanos) temos acesso ao
açúcar quando quisermos. Pode até ser que historicamente isso não tenha sido
sempre assim, mas atualmente é. E se faltar açúcar na sua casa, você sempre
pode ir ao mercado comprar mais. Ou seja, nosso acesso ao açúcar não é
intermitente.
Na verdade, o açúcar não é viciante desde 1940, quando um estudo
demonstrou que aumentar a concentração de açúcar na água dos ratos impactava o
quanto eles bebiam durante o dia, porém apenas até certo ponto. Quando a concentração
de açúcar na água ficava muito alta (acima de ~45%), eles bebiam menos do que
se a água fosse pura. Veja o gráfico abaixo, onde as bolinhas pretas
representam a água com açúcar e as brancas a água pura:
A concentrações tão altas de açúcar, a água fica tão “ruim”
que os animais preferem beber água pura. Se o açúcar fosse realmente viciante,
os ratos beberiam cada vez mais à medida que aumentasse a concentração de
açúcar na água.
Açúcar ≠ Drogas
Outra diferença importante entre o açúcar e as drogas é que
os roedores com maior acesso ao açúcar permanecem suscetíveis a procedimentos
de desvalorização¹. Isso significa que, por exemplo, se adicionarmos uma
substância provocadora de náusea à água com açúcar oferecida aos ratos, eles
vão parar de bebê-la. Isso não acontece com as drogas. Pelo contrário, os
animais viciados em cocaína e heroína continuam usando drogas apesar das
consequências negativas (náusea).
Além disso, cientistas demonstraram que, em comparação à
cocaína, diferentes circuitos neurais estão envolvidos na resposta a
recompensas naturais (como a alimentar). A resposta dopaminérgica ao açúcar (e
outras comidas) também se ajusta rapidamente, e é atenuada em resposta a
gatilhos, como o cheiro, por exemplo; em compensação, a resposta dopaminérgica
à cocaína não se adapta e, inclusive, é aumentada a partir de gatilhos.
“Em resumo, o consumo compulsivo de açúcar diverge do vício em drogas tanto em
nível neurobiológico quanto comportamental, sugerindo a necessidade de maior
cautela ao traçarmos paralelos entre os vícios em drogas e em açúcar.”
Então Por Que Temos Esse Desejo Por Doces?
O desejo por doces (ou por comidas em geral) também é
diferente do desejo por drogas, tanto em termos de intensidade, quanto de
frequência e duração. O desejo por comida é relativamente curto e desaparece mesmo
que não seja satisfeito, ao contrário do desejo por drogas, que é persistente e
não diminui de intensidade com a abstinência.
Os psicólogos Rogers e Smit sugerem
que esse desejo está mais relacionado a uma atitude ambivalente em relação a
determinadas comidas do que a um “vício” propriamente dito. Por exemplo, para
muitas pessoas o chocolate é uma comida altamente “desejável”, mas que deve ser
comida com restrição. Contudo, as tentativas de restringir seu consumo tornam o
chocolate mais importante para elas e essa experiência é percebida como um
desejo por chocolate. Isso, somado ao fato de que algumas vezes as pessoas
falham ao tentar restringir o consumo de chocolate, pode levar a uma falsa
percepção de que o desejo por chocolate é um vício, e que a pessoa é uma “chocólatra”
incurável. Mas não, isso provavelmente não é um vício de verdade.
O açúcar não é viciante, contudo ele é culpado por fazer
nossa comida (e a água dos ratos) ficar muito mais saborosa, o que nos leva a
comer mais (e leva os ratos a beberem mais). Na verdade, analisando estudos em
que os ratos receberam sacarina (um adoçante artificial não-calórico derivado do petróleo) ao
invés de açúcar, ou mesmo em que os animais não conseguiam sentir o gosto do açúcar, as evidências parecem demonstrar que é o gosto
doce o responsável pelo consumo e pelo comportamento dos animais em relação a
esse consumo. No fim, parece que é a palatabilidade
que faz a diferença.
O fato é que alimentos altamente palatáveis e recompensadores podem causar uma disrupção em nossos mecanismos naturais de sinalização do apetite, e os centros de prazer e recompensa do cérebro podem compartilhar algumas das
mesmas vias neurais que o vício. Assim, comidas altamente palatáveis podem ter
alguns efeitos semelhantes ao vício, e podem ser bem tentadoras e fáceis de se
comer demais.
O açúcar (assim como a gordura e o sal) é um componente
gastronômico capaz de aumentar a palatabilidade e o valor recompensatório dos
alimentos, o que pode aumentar a probabilidade de exagerarmos no consumo de uma
comida que o contém. Mas isso não significa que ele seja viciante. Embora o vício em comida ainda possa ser algo discutível, o vício em açúcar parece cair por terra completamente quando
se considera a palatabilidade dos alimentos. Mais estudos em humanos são
necessários para refutar ou comprovar diretamente essas teorias.
O Que Isso Significa Para Você
Por favor, não me entenda mal. Eu não estou dizendo para
comer açúcar livremente e sair adoçando tudo com doses cavalares de açúcar. O
excesso de açúcar ainda está associado à obesidade, diabetes e síndrome
metabólica, especialmente num contexto de superávit calórico – o que pode
ocorrer muito mais facilmente através de comidas altamente palatáveis.
Mas não, você não está viciado em açúcar. Pare de dizer
isso.
As pessoas que realmente lutam contra um vício (como alcoólatras
ou dependentes químicos) provavelmente ficariam muito putas de lhe ouvir dizer
isso.
Fontes:
1. Westwater
ML, Fletcher PC, Ziauddeen H. “Sugar addiction: the state of the science”. Eur
J Nutr. 2016 Nov;55(Suppl 2):55-69.
2. Krieger J. “No, you’re not addicted to sugar”.
Weightology: Articles/Fat Loss/Nutrition, 2017 May. https://weightology.net/no-youre-not-addicted-to-sugar/
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