Seu Biotipo Não Importa

Entenda por que seu biotipo não determina como você precisa treinar ou comer.



Nos anos 1940, o psicólogo William Herbert Sheldon usou milhares de fotos de estudantes universitários nus obtidas sem seu consentimento, retiradas de um programa de avaliação postural, para criar uma classificação da estrutura física do corpo humano. Ele descobriu que nossa estrutura corporal podia ser resumida em três dimensões: ectomorfia, mesomorfia e endomorfia. O trabalho original de Sheldon tentava ligar esse somatótipo (ou biotipo, como é popularmente conhecido) a traços de nossa personalidade, incluindo tendências à criminalidade e outras ideias meio nazistas sobre valores humanos.

É claro que, depois disso, diversos pesquisadores testaram e desacreditaram suas ideias, mas na área da ciência do exercício e da educação física essa classificação pegou. A sabedoria popular do meio fitness diz que seu biotipo determina como você deveria treinar e se alimentar, bem como suas aptidões esportivas. A teoria é mais ou menos assim:

  • Endomorfos: são naturalmente pesados, com ombros, tórax e cintura largos, ganham força e músculos com facilidade, mas têm dificuldade de perder peso. São perfeitos para o sumô e para o powerlifting.

  • Mesomorfos: são naturalmente musculosos, com ombros largos e cinturas finas, ganham músculos e perdem gordura com relativa facilidade. São perfeitos para diversas modalidades de esportes, assim como para o fisiculturismo.

  • Ectomorfos: são naturalmente magros, altos e longilíneos, perdem gordura com facilidade, mas possuem dificuldade para ganhar músculos. São perfeitos para corridas de fundo e ... para a passarela?!

Três somatótipos (Granito diaz / CC BY-SA 4.0)

A denominação dos três somatótipos é derivada das três camadas germinativas formadas durante o desenvolvimento embrionário: a endoderme, camada interna que dá origem primariamente ao sistema digestivo; a mesoderme, que dá origem aos ossos e músculos; e a ectoderme, que dá origem ao sistema nervoso e à pele, entre outras coisas.

O interessante é que na pesquisa original de Sheldon (“Atlas Humano”), que classifica o somatótipo em uma escala numérica considerando uma combinação de 7 níveis diferentes entre cada dimensão (endomorfia, mesomorfia e ectomorfia), assim como no estudo posterior de Heath e Carter que veremos logo adiante, as características morfológicas de uma pessoa dificilmente enquadram-se em uma única dimensão, que seria, por exemplo, um endomorfo puro (7-1-1; endomorfia predominante [7] e mesomorfia e ectomorfia ausentes [1-1], respectivamente).

Apesar de existirem indivíduos com essas classificações puras, ao contrário do que a maioria dos sites na internet e dos palpiteiros de plantão lhe disseram, nem todo mundo precisa ser classificado em um único biotipo, já que na verdade a classificação leva em conta diversas proporções de cada dimensão. Então, ao invés de pensar nessa classificação como 3 pontos distintos, deve-se visualizá-la como essa figura triangular/piramidal abaixo (conhecida como somatocarta), com diversos pontos possíveis onde você pode se encaixar.

Exemplo de somatocarta (as ref. 3)³



Como Saber Seu Biotipo

O método mais bem estabelecido de avaliação do somatótipo é o de Heath-Carter. Ele requer que você tire diversas medidas antropométricas, como dobras cutâneas, circunferências, altura e peso, e use algumas fórmulas matemáticas a fim de calcular as correlações de suas características com cada um dos somatótipos. Com base nos valores encontrados você conseguiria classificar seu biotipo em uma das 13 categorias possíveis.

Não sei se algum profissional, além dos cientistas do exercício, realmente aplica essas fórmulas, mas você pode ter uma ideia razoavelmente boa de qual seu biotipo primário simplesmente se olhando no espelho. A maioria das pessoas fica em um meio termo, mas analisando bem e sabendo que você não precisa escolher um único somatótipo (e inclusive pode ser um tipo balanceado), você provavelmente já consegue ter alguma ideia de qual sua classificação.



Seu Biotipo Influencia no Seu Treino?

Para muitos profissionais, a ideia de que seu tipo físico determina como você deve treinar é pura pseudociência, mas no meio fitness quase todo mundo acredita nisso. Também pudera, já em 1994 um estudo com indivíduos destreinados mostrou que sujeitos com uma estrutura corporal sólida (que poderíamos considerar mesomorfos, ou mesmo endomorfos) ganharam mais massa magra após 12 semanas de treino resistido (i.e. musculação) do que indivíduos com uma estrutura corporal delgada (vulgo ectomorfos).

Nesse exemplo, porém, caímos naquela velha história do ovo ou da galinha (quem veio primeiro, afinal?). Os indivíduos com estrutura sólida ganharam mais músculos porque eram maiores ou eles já eram maiores porque tinham mais facilidade em ganhar massa magra?!

Outro estudo, que dividiu crianças em três grupos, em que um treinou força, outro realizou um treino mais aeróbio e o terceiro foi usado como controle, também mostrou que o somatótipo influenciou significativamente os ganhos em performance. A mesomorfia foi associada com melhoras na performance de sprints (tiros) de 20m; a ectomorfia também foi associada a melhoras na performance de sprints, bem como melhoras na performance aeróbia; a endomorfia, contudo, foi associada negativamente com a performance no salto vertical.

Contudo, em um outro estudo com crianças a endomorfia foi positivamente correlacionada com força absoluta, mas não com força relativa - como em exercícios com o peso corporal (abdominal, apoio e salto horizontal) - para os quais a ectomorfia virou um fator positivo na performance.

As mesmas variáveis de performance que são positivamente influenciadas pelo nosso biotipo também parecem ser aquelas que apresentam uma maior treinabilidade. Isso pode ser, em parte, devido a fatores motivacionais. Nós gostamos de coisas nas quais somos bons, logo temos a tendência de colocar maior esforço nelas. Se você quase morre para correr 5km, mas é ótimo em tiros curtos, você provavelmente prefere treinar velocidade ou sprints.

Apesar disso, também há, provavelmente, um componente genético bem importante. Um estudo mostrou que nós temos maiores ganhos fazendo um treino de força cujo volume e intensidade é mais adaptado ao nosso genótipo. Novas pesquisas vêm mostrando que indivíduos que respondem bem a um programa de musculação com baixo volume, também tendem a responder bem a um alto volume de treino, enquanto os que respondem mal ao baixo volume, também respondem mal (ou não tão bem, pelo menos) ao maior volume; e essas respostas estariam relacionadas, possivelmente, à biogênese ribossomal.



Seu Biotipo Influencia na Sua Performance?

Se nós temos maiores ganhos no tipo de treino em que somos naturalmente privilegiados, e se nosso biotipo influencia no que somos bons, será que deveríamos escolher modalidades esportivas baseados em nosso somatótipo?

Aparentemente, diversos cientistas do exercício se perguntaram isso muitas vezes na história, vide o grande número de publicações relacionando os diferentes somatótipos à performance esportiva nos mais variados esportes. E os resultados são um pouco conflitantes:

Por exemplo, pesquisas com judocas verificaram que a mesomorfia é positivamente correlacionada com força e potência, enquanto a ectomorfia é negativamente correlacionada (como esperado, segundo a teoria do somatótipo), contudo a maioria dos atletas de elite de Taekwondo apresentava como principal componente de seu biotipo a ectomorfia.

Um estudo com homens ativos verificou que a mesomorfia foi positivamente correlacionada com a força (3RM) no supino e no agachamento, enquanto a ectomorfia foi negativa. A mesomorfia foi capaz de estimar melhor a performance no supino, porém no caso da performance no agachamento foi uma combinação entre mesomorfia e (surpresa!) ectomorfia; a endomorfia, por sua vez, não foi significativamente correlacionada com a performance de força.

Não sei vocês, mas eu apostaria em uma combinação de meso e endomorfia se tivesse que chutar os indivíduos mais fortes; mas segundo o estudo acima parece que eu perderia dinheiro.

Pode ser porque nós temos na cabeça essa ideia de que as alavancas e dimensões corporais dos endomorfos podem influenciar a performance em esportes de força. Por exemplo, indivíduos com braços longos e tronco curto, teoricamente, teriam vantagem no levantamento terra, enquanto sujeitos com fêmures curtos levariam vantagem no agachamento. E sempre que vemos os melhores atletas nas categorias de peso livre de levantamento de peso (LPO), powerlifting e strongman eles são gordos. Parece plausível, não é? Mas alguns estudos têm demonstrado que a única variável importante na performance está relacionada mesmo é com a massa magra, ou seja, com quanto músculo você tem (mesmo que seja por baixo de uma capa de gordura, no caso).

A diferença primária entre atletas amadores e atletas de elite é que os últimos têm um maior componente mesomorfo. Em quase todo esporte em que a força é determinante, a performance é influenciada positivamente pela muscularidade; e em quase todo esporte em que a força relativa é determinante, a performance é influenciada negativamente pela gordura corporal.

A diferença entre atletas amadores e atletas profissionais, então, não é que alguns tiveram mais sorte ao nascer com o somatótipo adequado, mas sim que os atletas de alto nível, em geral, são mais musculosos e possuem menos gordura corporal. Então, pare de reclamar de seu biotipo e vá treinar direito.



Seu Biotipo Influencia na Sua Dieta?

O senso comum nos diz que os indivíduos mesomorfos têm um metabolismo mais lento, e é por isso que eles são gordos, assim como os ectomorfos têm um metabolismo acelerado, motivo pelo qual eles são mais magros. Contudo, o somatótipo parece não estar correlacionado com a taxa metabólica basal (TMB), visto que indivíduos obesos usualmente possuem uma TMB maior do que indivíduos não-obesos.

Em um estudo coreano com jogadores de futebol, os goleiros tinham um metabolismo significativamente mais alto do que seus colegas. A maior TMB estava relacionada com uma maior quantidade de massa magra, mas como eles também eram mais altos e mais pesados que os jogadores das outras posições, seu biotipo não era diferente dos demais.

Na verdade, parece que não é o seu biotipo que determina como deveria ser sua dieta, mas sim o contrário: sua dieta é que determina seu biotipo. Se você é um endomorfo, isso é determinado na maior parte das vezes por fatores ambientais (ou seja, sua dieta) e não pela sua genética, já que a endomorfia é praticamente uma função de seu percentual de gordura, como veremos a seguir, que é algo totalmente sob seu controle (embora nem sempre fácil). Perdendo gordura suficiente, você pode mudar seu biotipo de endomorfo para mesomorfo, ou até mesmo para ectomorfo, principalmente se você não fizer musculação.

Ninguém duvidaria que qualquer um pode virar um endomorfo, basta olhar para algumas pessoas que você conheceu na juventude depois de um intervalo entre 10 e 20 anos, então por que duvidar do contrário?

A única influência que seu biotipo talvez (ênfase no TALVEZ) tenha em sua dieta, conforme sugerido por Menno Henselmans¹, é na quantidade de calorias consumidas durante o ganho de peso (bulking). Como indivíduos com uma estrutura corporal sólida (típicos mesomorfos) conseguem ganhar mais músculos do que indivíduos delgados (ectomorfos), talvez eles se beneficiem de consumir um superávit calórico um pouco maior quando tentando ganhar massa magra.

Isso vai totalmente contra a “sabedoria popular”, de que os ectomorfos deveriam consumir um superávit calórico muito maior para ganhar músculos. Eu concordo que um ectomorfo que não consegue ganhar peso, provavelmente, está pecando em algum lugar da equação do balanço calórico, seja por estar consumindo menos calorias do que gasta (comendo pouco), seja por estar gastando inconscientemente (atividade física espontânea ou durante o exercício) mais calorias do que consome. Contudo, dada sua dificuldade natural de construir músculos, um superávit calórico muito grande (maior do que umas 300 a 500 kcal por dia) provavelmente só vai levar a um maior acúmulo de gordura.

Fora isso, tudo o que seu biotipo quer dizer em relação à sua dieta é se você deveria focar em ganhar músculos (bulking) ou perder gordura (cutting).



O Que Isso Significa Para Você

Embora as dimensões do somatótipo não façam um trabalho muito bom tentando explicar como você deve treinar, comer ou se você terá sucesso em algum esporte, tudo o que vimos até aqui faz perfeito sentido se considerarmos as medidas antropométricas utilizadas para determinar o somatótipo. Diversos estudos que analisaram o biotipo dos participantes também verificaram seu percentual de gordura e massa magra. Se levarmos em conta essas correlações, fica claro que é a composição corporal e não o biotipo o que importa.

As equações de Heath-Carter que determinam o somatótipo são, basicamente, uma função de outras medidas relacionadas à composição corporal:

  • A endomorfia é uma função da gordura corporal, visto que seu cálculo leva em conta as dobras cutâneas triciptal, subescapular e suprailíaca corrigidas pela sua altura. Veja a fórmula abaixo: 

Equação para o cálculo do componente endomorfo segundo Heath-Carter²


  • A mesomorfia é uma função de sua massa muscular, uma vez que seu cálculo leva em conta as circunferências de seu braço e panturrilha corrigidas pelas dobras cutâneas (gordura subcutânea), bem como os diâmetros ósseos de seu joelho e cotovelo:

Equação para o cálculo do componente mesomorfo segundo Heath-Carter²


  • O componente ectomórfico é baseado na razão de sua estatura e peso corporal:

Equação para o cálculo do componente ectomorfo segundo Heath-Carter²


Ou seja, seu biotipo não diz nada sobre qual o melhor tipo de treino para você, mas somente prediz quanto músculo e gordura você tem e o quão alto você é. Os cálculos apenas pegam essas três variáveis e as classificam em diferentes dimensões, enfraquecendo suas correlações no meio do processo. Para se ter uma ideia da pouca aplicabilidade desse método, segundo um estudo, o somatótipo não demonstra uma relação muito forte com a força de preensão manual, a qual é, em sua maior parte (60%), relacionada à estatura e, possivelmente, correlacionada com o peso ao nascer.



Como Usar Essa Informação

Seu biotipo é apenas uma classificação de sua forma física atual, a qual é totalmente mutável.

Todos nós temos estruturas corporais diferentes e algumas delas serão melhores para certos tipos de exercícios e esportes do que outras, mas, salvo raras exceções, sua performance é principalmente determinada pelo seu treinamento e sua composição corporal, e não pelo seu biotipo.

Seu somatótipo é altamente influenciado por sua estatura, massa magra e gordura corporal. No entanto, sua composição corporal é altamente influenciada por sua dieta, e não por sua genética (embora ela tenha uma maior influência quanto à muscularidade).

Isso significa que você pode alterar drasticamente seu biotipo perdendo gordura e/ou ganhando músculos. Então não existe essa coisa de estar fadado a ser um eterno endomorfo ou ectomorfo. Qualquer um pode emagrecer ou ganhar músculos, só que algumas pessoas vão precisar trabalhar muito mais duro para isso do que outras.

Em conclusão, seu biotipo só importa para seu treino e sua dieta na medida em que ele lhe dá uma estimativa aproximada de sua massa muscular e gordura corporal, ajudando a definir seus objetivos, mas uma avaliação de composição corporal lhe dá o mesmo tipo de resultado.

Seu somatótipo, por si só, não lhe diz como você deveria treinar para ganhar músculos e força ou perder gordura. A dieta e o treino que você precisa para mudar a forma de seu corpo seguem os mesmos princípios que seriam aplicados a qualquer outra pessoa. Praticamente qualquer um pode ficar mais mesomorfo se realmente quiser isso e estiver disposto a pagar o preço.

Seu biotipo não define você; você define seu biotipo.



Fontes:
1. Henselmans M. “Endomorph, ectomorph, mesomorph: what does it mean for your diet and workout?”. Articles MennoHenselmans.com. https://mennohenselmans.com/endomorph-ectomorph-mesomorph-diet-workout/.
2. Noh JW et al. “Somatotype and body composition analysis of Korean youth soccer players according to playing position for sports physiotherapy research”. J Phys Ther Sci. 2015 Apr;27(4):1013-7.
3. Štěrbová Z et al. “Father's physique influences mate preferences but not the actual choice of male somatotype in heterosexual women and homosexual men”. Evolution and Human Behavior (2017), https://doi.org/10.1016/j.evolhumbehav.2017.09.002.

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