Dor Muscular Não Tome Analgésicos! Onde pôr a vírgula?

O paradoxo dos analgésicos e anti-inflamatórios para dor muscular e sua relação com a idade nos resultados do treino.


Pílulas: Analgésicos e AINEs


Eu sei que esse título soou estranho, mas eu garanto que ao final deste artigo, com as devidas correções gramaticais, ele soará melhor.

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Eu também sei que você já fez isso. Quase todo mundo faz.

Você finalmente resolve começar a academia ou mesmo mudar o treino. Você chega, aprende uma meia dúzia de exercícios novos, repete eles algumas vezes e, no dia seguinte, você praticamente não consegue levantar da cama.

A dor é tanta que você desconfia que teve um episódio de sonambulismo durante a noite, saiu caminhando no meio da rua e um caminhão deve ter lhe atropelado. Só pode ter sido isso. Mas você não está no hospital, você está em casa e ainda vive. Só dói quando você respira.

Aí você se recorda daquela maldita sessão de musculação do dia anterior. Você amaldiçoa o professor, a treinadora, personal, coach ou quem quer que tenha lhe feito passar por isso. Cogita processá-los por lesão corporal grave, se ao menos você conseguisse levantar.

Mas aí você lembra que tem um analgésico na gaveta. Provavelmente um paracetamol ou talvez um ibuprofeno ou uma aspirina. Você achou a solução: só vai ter que passar o resto do dia abaixo desse remedinho para dor.

Quem nunca passou por isso?

O problema é que, segundo a ciência, essa é uma péssima opção para quem deseja ganhar músculos, a não ser que você seja velho. Nesse caso, o efeito parece ser justamente o contrário.


O Que Nós Sabíamos?

Em 2002, o grupo do pesquisador norte-americano Todd Trappe examinou os efeitos agudos do consumo de dois medicamentos analgésicos/AINEs (anti-inflamatórios não esteroides) no anabolismo muscular de pessoas jovens, o acetaminofeno (ou paracetamol) e o ibuprofeno.

Assim como no Brasil, esses remédios podem ser adquiridos sem prescrição médica nos EUA. E, assim como no Brasil, no resto do mundo ninguém consulta um médico para tomá-los.

No experimento, os cientistas dividiram 24 homens jovens (média de 25 anos), não praticantes de musculação em 3 grupos:

  • Um grupo recebia uma dose de 1200mg/dia (dose máxima, conforme instruções do medicamento) de ibuprofeno;
  • O segundo grupo recebia a dose máxima (4000mg/dia) de paracetamol;
  • O terceiro grupo recebia placebo.


Todos os indivíduos foram submetidos a um treino com 10 a 14 séries, descansando 1 minuto entre elas, de 10 repetições excêntricas (negativas) a 120% de 1RM de extensão de joelho realizadas em um dinamômetro isotônico Cybex até a fadiga. Sim, a intenção era realmente causar um monte de microlesões e dor muscular tardia (DMT) nos participantes.

Imediatamente após o treino e nos 8 dias seguintes, os voluntários tomaram seus analgésicos (ou placebo) a cada 8 horas, 3 vezes por dia.

Para medir os efeitos dos analgésicos no anabolismo muscular, 24 horas depois do treino, os voluntários foram submetidos a uma infusão de fenilalanina (um aminoácido) marcada isotopicamente diretamente na veia. Assim, os cientistas podiam verificar sua presença na circulação e nos músculos dos participantes, através de coletas de sangue e biópsias do músculo vasto lateral da coxa.

As biópsias foram feitas 2 dias antes do treino, e 2h e 5h após o início da infusão no dia seguinte ao exercício.

Isto foi o que eles encontraram:

A taxa de síntese proteica fracionada nos músculos aumentou significativamente (76%) no grupo que tomou placebo. Já a síntese proteica dos grupos que consumiram os analgésicos, tanto paracetamol (22%) quanto ibuprofeno (35%), não se alterou significativamente.

A síntese proteica é o mecanismo pelo qual novas proteínas são adicionadas ao músculo, ou seja, o próprio processo de construção muscular.

A percepção de dor dos participantes aumentou 1 dia após o exercício, foi máxima 2 dias depois e somente voltou ao normal 6 a 7 dias após a intervenção, mesmo para os grupos que tomaram analgésicos.

Segundo os autores, os principais achados desse estudo foram que o ibuprofeno e o acetaminofeno inibiram a resposta de síntese proteica normalmente ocorrida após o tipo de exercício utilizado no estudo.

Os autores também citaram que pode parecer surpreendente que nenhum dos medicamentos proporcionou qualquer nível de analgesia comparado ao placebo, já que outros estudos indicaram redução da dor muscular 24 a 48h após o exercício, contudo tais estudos usaram um protocolo de exercícios menos intenso. De fato, nesse estudo a dor e o edema foram tão intensos que foram suficientes para restringir a marcha (caminhada) dos sujeitos por dias após o experimento.

E concluíram da seguinte forma:

“O aumento da taxa de síntese proteica muscular normalmente visto 24h após o exercício resistido excêntrico de alta intensidade foi atenuado pelo consumo de ibuprofeno e acetaminofeno em doses “de balcão”. A influência em longo prazo dessa resposta aguda após o exercício resistido para indivíduos que consomem esses medicamentos (ou similares) de forma crônica não pode ser determinada por este estudo. Apesar disso, o uso a longo prazo dessas drogas pode inibir a resposta hipertrófica normal ao treinamento resistido”.

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Contudo, conforme os autores sugeriram, estudos futuros seriam necessários para investigar os efeitos dos analgésicos a longo prazo.

E foi isso que o grupo do Dr. Trappe fez nos anos seguintes.


O Que Eles Descobriram Depois?

Em 2011, o mesmo grupo publicou um estudo no American Journal of Physiology investigando os efeitos do consumo de paracetamol e ibuprofeno na massa muscular e força de indivíduos idosos praticando musculação (treinamento resistido).

Segundo os autores, essa população é especialmente suscetível ao uso desse tipo de medicamento. Além disso, a sarcopenia (perda de massa muscular e força) é um problema comumente encontrado em idosos, de forma que se os resultados do estudo anterior fossem comprovados, os efeitos dos analgésicos seriam especialmente deletérios para a saúde de idosos.

Nesse estudo, os pesquisadores recrutaram 36 idosos (24 homens e 12 mulheres), entre 60 e 78 anos, e os submeteram a 12 semanas de um programa de treinamento resistido progressivo, consistindo de 3 séries de 10 repetições de extensão de joelhos, com descanso de 2 minutos entre séries, repetido três vezes por semana. As cargas utilizadas foram próximas de 70 a 75% de 1RM.

Novamente, eles dividiram os indivíduos em três grupos, onde um grupo tomou paracetamol (4000mg/dia), o outro ibuprofeno (1200mg/dia) e o último tomou placebo, divididos em 3 doses ao dia.

Antes e depois do treino, os pesquisadores mediram:

  • o volume muscular, por ressonância magnética, dos músculos do quadríceps femoral e dos isquiotibiais;
  • a força, através de teste de 1RM na cadeira extensora;
  • o conteúdo de proteína muscular, conteúdo de água muscular, distribuição de cadeia pesada de miosina (MHC), níveis de proteínas COX e níveis de mRNA, através de biópsia do músculo vasto lateral da coxa.


Contrariando as hipóteses iniciais dos pesquisadores, eles verificaram que:

O volume muscular do quadríceps aumentou significativamente nos 3 grupos, com uma clara vantagem para os grupos que tomaram paracetamol (12,5%) e ibuprofeno (11%), comparado ao grupo que tomou placebo (8,7%).

O volume muscular dos isquiotibiais (que não foram treinados nesse estudo), por sua vez, não se alterou.

A força muscular também aumentou consideravelmente em todos os grupos, mas, novamente, aumentou mais nos grupos que tomaram os analgésicos/AINEs (~18,5kg), comparado ao grupo placebo (~15kg).

As biópsias não revelaram diferenças no conteúdo de proteína muscular e água, ou na distribuição de MHC entre os grupos.

Os níveis de proteína COX-1 e mRNA foram aumentados em todos os grupos, como um resultado do treino resistido, sem diferenças significativas entre eles.

Os autores concluíram:

“O consumo diário de inibidores de COX (como o paracetamol e o ibuprofeno) durante o treinamento resistido resultou em um aumento cerca de 25 a 50% maior em massa muscular e força comparado ao grupo consumindo placebo em homens e mulheres mais velhos que completaram o mesmo programa de treinamento resistido por 12 semanas. Embora doses sem prescrição médica de acetaminofeno e ibuprofeno tenham sido utilizadas no presente estudo, os riscos associados aos inibidores de COX precisam ser considerados antes do uso dessas drogas por qualquer população”.

Mesmo assim, os autores sugerem que o uso dessas drogas pode ser clinicamente relevante para indivíduos idosos com sarcopenia, visto que com 12 semanas de treino associado ao uso dos medicamentos os voluntários foram capazes de reverter cerca de 10 anos de sarcopenia sem a ocorrência de alterações em marcadores hematológicos e de função hepática e renal, conforme verificado através de exames de sangue.

Contudo, certamente os pesquisadores não se sentiram à vontade para sugerir o uso crônico de analgésicos/AINEs em idosos, ainda mais sem acompanhamento médico.


Como Isso Funciona?

Atenção: a seguir teremos linguagem técnica e seção nerd com explicações bioquímicas, caso não se interesse por essa parte pode ler o último parágrafo e pular para a próxima seção.

Os medicamentos testados nos estudos (paracetamol e ibuprofeno), dentre outros analgésicos e AINEs, atuam em nosso corpo bloqueando enzimas conhecidas como ciclooxigenases (COX-1 e COX-2).

As ciclooxigenases (COX) convertem o ácido araquidônico em prostaglandinas. As prostaglandinas (PG), por sua vez, são ácidos graxos que possuem ações semelhantes a hormônios, porém com efeitos localizados apenas na própria célula e nas células vizinhas, sendo responsáveis pela inflamação, dor e pela regulação do metabolismo de proteína no músculo esquelético (dentre diversas outras funções em nosso corpo).

De maneira simplista, as principais prostaglandinas envolvidas no exercício resistido são a Prostaglandina F2α (PGF2α), com efeitos anabólicos, e a Prostaglandina E2 (PGE2), com efeitos catabólicos.

O que o grupo do Dr. Trappe descobriu em outro estudo³ é que o treinamento resistido em conjunto com o consumo de analgésicos em idosos provocou uma suprarregulação dos receptores da PGF2α, ajudando a compensar a supressão da síntese proteica induzida pelas drogas após o exercício e, aparentemente, aumentando a sensibilidade muscular à estimulação da síntese de proteínas.

Na mesma esteira, houve uma supressão da produção de PGE2 intramuscular, que provocou uma redução na IL-6 (interleucina 6) e MuRF1 (Muscle RING-finger protein-1) induzidas pela PGE2 após o exercício, ambas promotoras de perda muscular, aumentando o balanço proteico nos músculos.

Assim, com o uso desses medicamentos, é possível que a degradação proteica seja inibida ou reduzida em uma medida maior do que a supressão da síntese proteica, resultando num balanço proteico positivo e na adição de proteína nos músculos, consequentemente aumentando a massa muscular em idosos.


O Que Isso Significa para Você

Agora que verificamos esses estudos, releia o título deste artigo novamente.

Se você for jovem, você vai querer colocar a vírgula após a palavra “muscular”:

Dor Muscular, Não Tome Analgésicos!


Se você for mais velho, você vai preferir pôr a vírgula depois do “não”:

Dor Muscular Não, Tome Analgésicos!


Certo, mas o quão velho é velho o suficiente para haver benefícios com o uso dos analgésicos?

Essa é uma pergunta difícil de responder. Segundo os estudos analisados, após os 60 anos parece ser uma idade em que os analgésicos já devem apresentar benefícios mais claros.

Deve haver uma área nebulosa entre os 50 e 60 anos, até porque as pessoas envelhecem de forma diferente, conforme o estilo de vida.

E enquanto há riscos no consumo dessas drogas, como irritação estomacal e úlceras, insuficiência cardíaca, infarto, lesão hepática e renal, os efeitos do uso crônico em longo prazo desses medicamentos ainda não foram especificamente estudados. Logicamente, esses riscos vão variar de pessoa para pessoa.

Caso você decida fazer o uso desses medicamentos - sempre com acompanhamento médico - por segurança, seria prudente tomá-los por um período determinado (p.ex. 12 semanas) e, após, interromper o uso por um período igualmente longo ou ainda maior.

E "se você é jovem ainda", evitá-los parece ser a melhor opção.



Fontes:
1. Trappe, Todd A et al. “Effect of ibuprofen and acetaminophen on postexercise muscle protein synthesis.” American Journal of Physiology-Endocrinology and Metabolism 2002 282:3, E551-E556.
2. Trappe, Todd A et al. “Influence of acetaminophen and ibuprofen on skeletal muscle adaptations to resistance exercise in older adults.” American journal of physiology. Regulatory, integrative and comparative physiology vol. 300,3 (2011): R655-62. doi:10.1152/ajpregu.00611.2010.
3. Trappe, Todd A et al. “Prostaglandin and myokine involvement in the cyclooxygenase-inhibiting drug enhancement of skeletal muscle adaptations to resistance exercise in older adults.” American Journal of Physiology-Regulatory, Integrative and Comparative Physiology 2013 304:3, R198-R205.

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